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O Brasil deve condenar o golpe em Mianmar

Publicado em: UOL
A polícia usa um canhão d'água contra uma multidão de manifestantes em Naypyitaw, Mianmar, na segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021. ©2021 AP Photo 

O número de mortos continua aumentando em Mianmar, enquanto as forças de segurança atiram contra manifestantes pacíficos. Mesmo assim, as manifestações em todo o país continuam.

Multidões em Mianmar têm deixado claro que rejeitam o golpe militar de 1º de fevereiro que derrubou o governo democraticamente eleito. Apesar do aumento da violência por parte das forças de segurança, a população mostra que não será intimidada.

Os generais tomaram o poder depois que a comissão eleitoral de Mianmar rejeitou suas alegações de fraude na eleição de novembro de 2020. O partido Liga Nacional pela Democracia, liderado por Aung San Suu Kyi, havia sido reeleito com uma vitória esmagadora, e conquistado as duas casas do parlamento.

Em 12 de fevereiro, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou por unanimidade uma resolução expressando profunda preocupação com a situação em Mianmar, pedindo a libertação de Aung San Suu Kyi e de todos os detidos arbitrariamente, e instando a junta militar a cooperar com entidades internacionais de direitos humanos.

Como membro do Conselho de Direitos Humanos, o Brasil apoiou a resolução, mas sua resposta em relação ao Mianmar foi tímida até o momento.

Um dia após o golpe, o Itamaraty publicou uma declaração de três linhas emprestando a linguagem do “estado de emergência” usada pelos militares de Mianmar. Ao invés de exercer pressão sobre estes, projetou passividade ao anunciar apenas que o Brasil “espera” um rápido retorno à normalidade democrática. Era como se o Ministério das Relações Exteriores estivesse criticando a resposta do país a um terremoto ou tsunami. O Brasil se compometeu apenas a acompanhar “atentamente os desdobramentos”.

Diversos governos democráticos, incluindo os Estados Unidos e a França, fizeram melhor, condenaram o golpe e pediram a libertação de manifestantes e autoridades detidas. Eles impuseram sanções direcionadas aos membros da junta militar, incluindo o congelamento de seus ativos financeiros, recomendaram a restauração total das redes de comunicação e exortaram os militares a restaurar o regime democrático.

Da mesma forma, em 23 de fevereiro, os países do G7 condenaram a violência militar, exigindo que as forças de segurança exerçam “maior contenção e respeito pelos direitos humanos e pelo direito internacional”.

A decisão do Brasil de não chamar a tomada ilegítima do poder de “golpe” angustia. Como um país que sofreu com ditadores militares, o Brasil deveria reconhecer o direito das pessoas em todos os lugares de eleger seus governantes.

Não há dúvidas de que terríveis violações de direitos humanos estão ocorrendo em Mianmar. Na ocupação iniciada na manhã de 1º de fevereiro, os militares prenderam Aung San Suu Kyi e outros líderes civis dos governos estadual e nacional. A junta recém-formada deteve centenas de ativistas e membros da Liga Nacional para a Democracia, mantendo-os incomunicáveis. A repressão e a onda de prisões arbitrárias agora se espalharam e incluem ativistas políticos, organizadores da sociedade civil, jornalistas nacionais e internacionais, funcionários públicos e até monges budistas.

Em poucos dias, a junta restringiu – e chegou até a limitar completamente, especialmente à noite – o acesso à internet e bloqueou aplicativos de mídia social, incluindo Facebook, Twitter e Instagram. Não demorou a elaborar um projeto de lei que, se implementado, dará aos militares poderes duradouros para acessar os dados dos usuários da internet, bloquear sites, ordenar restrições ao acesso à internet e prender críticos e funcionários de empresas que descumprirem suas ordens.

A junta militar também impôs toque de recolher e amplas restrições em todo o país, efetivamente proibiu reuniões e protestos pacíficos, uma violação ao direito internacional. Quando centenas de milhares de pessoas desafiaram as restrições e protestaram, a polícia disparou gás lacrimogêneo, canhões de água, balas de borracha e munições letais. Um dos primeiros tiros fatais ocorreu em 9 de fevereiro, quando a polícia da capital, Naypyidaw, atirou na nuca da jovem de 19 anos Mya Thwate Thwate Khaing. Ela morreu 10 dias depois.

O Conselho de Administração do estado, junta instalada pelos generais, intensificou as detenções arbitrárias, incluindo pelo menos 23 presidentes e membros da comissão eleitoral, representando todas as 14 regiões e estados de Mianmar. Um levantamento realizado por uma organização não governamental local mostrou que o número de pessoas detidas arbitrariamente é superior a 1.700. Teme-se que algumas centenas de pessoas tenham sido vítimas de desaparecimento forçado. E os generais continuam ordenando revisões repressivas do sistema jurídico do país, incluindo emendas à lei que agora estabelece longas sentenças para qualquer ação que obstrua a conduta militar.

Talvez a passividade do Brasil diante de um golpe de estado não devesse ser uma surpresa. O presidente Jair Bolsonaro muitas vezes expressou nostalgia da ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Ao contrário da Argentina e do Chile, que estabeleceram comissões da verdade e condenaram os responsáveis por graves violações de direitos humanos, o Brasil demorou a estabelecer uma comissão, e nenhum militar brasileiro foi condenado criminalmente por violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura. O fracasso do Brasil em responsabilizar os abusadores daqueles anos pode ter ajudado a pavimentar o caminho para a ascensão de Bolsonaro ao poder.

As autoridades brasileiras precisam se juntar a outros governos para exigir que os militares de Mianmar honrem os resultados das eleições nacionais de novembro. O Conselho de Direitos Humanos já começou sua 46ª sessão e tratará em breve da crise de Mianmar. O Brasil tem uma nova chance de fazer a coisa certa: não apenas pedindo a libertação dos detidos e o respeito aos direitos humanos, mas também instar de forma veemente as autoridades em Mianmar que restaurem o governo civil democraticamente eleito e responsabilizem os perpetradores de violações dos direitos humanos.

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