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Exmo. Sr. Presidente da FUNAI Marcelo Augusto Xavier,

Escrevo em nome da Human Rights Watch para pedir, respeitosamente, que V.Ex.ª. revogue a Resolução n° 4/2021, adotada pela FUNAI em 22 de janeiro, e publicada em 26 de janeiro, que estabelece, entre outros critérios, a identificação do indivíduo por um grupo étnico conforme “definição lastreada em critérios técnicos/científicos"[1]. Em nossa avaliação, a resolução viola obrigações internacionais de direitos humanos tanto na forma como foi editada quanto em seu conteúdo.

A Human Rights Watch é uma organização internacional não governamental que investiga e denuncia abusos de direitos humanos em todo o mundo. Ao conduzir nossas pesquisas em diferentes países, aplicamos os tratados internacionais atualmente em vigor nessa área e trabalhamos com os governos e a sociedade civil para defender os direitos humanos e o estado de direito.

Como sabe, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso suspendeu os efeitos da referida resolução no dia 16 de março, alegando sua inconstitucionalidade[2]. O então Advogado Geral da União interpôs agravo regimental questionando a decisão por motivos processuais. Se este agravo for recebido, os efeitos da resolução serão retomados. Ao invés de aguardar a apreciação do recurso, a FUNAI deveria revogar a Resolução de uma vez por todas e comunicar a Advocacia Geral da União para que desista do recurso interposto.

A resolução é questionável por vários motivos. Em primeiro lugar, foi editada pela FUNAI sem a devida consulta às comunidades envolvidas. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas exige que, antes de adotar e implementar quaisquer medidas legislativas ou administrativas que afetem os povos indígenas interessados, os Estados devem consultá-los, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado[3].

Em segundo lugar, a resolução estabelece critérios arbitrários para identificar quem é indígena de forma inconsistente com as normas internacionais de direitos humanos.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 2002, estabelece que a autoidentificação de um grupo como indígena deve ser considerada um critério fundamental para determinar se a Convenção é aplicável[4].

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas – sobre a qual o Brasil votou favoravelmente na Assembleia Geral da ONU – estabelece que os povos e pessoas indígenas têm o direito de pertencer a uma comunidade indígena de acordo com as tradições e costumes da comunidade ou nação em questão, e que os povos indígenas têm o direito de determinar sua própria identidade ou composição conforme seus costumes e tradições[5].

No que diz respeito à filiação, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que “a identificação da Comunidade, desde seu nome até sua composição, é um fato histórico-social que faz parte de sua autonomia”, e que “a Corte e o Estado devem limitar-se a respeitar as determinações que a Comunidade apresente neste sentido”[6]. Da mesma forma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) “considera o critério de autoidentificação como o principal para o reconhecimento de um grupo humano como povo indígena, tanto no sentido individual quanto coletivo”[7].

Essas normas internacionais estão refletidas na Constituição do Brasil,

que reconhece aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam[8].

Até então, a FUNAI considerava a “autodeclaração e consciência de sua identidade indígena” e o “reconhecimento dessa identidade por parte do grupo de origem” como critérios fundamentais para definir quem é indígena no Brasil[9]. A FUNAI também reconheceu que “não cabe ao Estado reconhecer quem é ou não indígena, mas garantir que sejam respeitados os processos individuais e sociais de construção e formação de identidades étnicas”, com base nas obrigações do Brasil nos termos da Convenção 169 da OIT[10].

A Resolução n° 4/2021 contradiz o entendimento anterior da própria FUNAI sobre o pertencimento a uma comunidade indígena e viola o direito internacional[11]. Ao estabelecer o reconhecimento de um indivíduo por um grupo étnico conforme “definição lastreada em critérios técnicos/científicos”, bem como outros critérios, a resolução viola o direito dos povos indígenas de determinar autonomamente sua filiação. O texto da resolução também sugere que há algo “cientificamente” mensurável ou distinto sobre os povos indígenas, uma noção degradante que lembra teorias coloniais sobre inferioridade racial.

Além disso, estamos preocupados que este critério vago possa ser usado pela FUNAI no futuro para restringir arbitrariamente a definição de quem é indígena e restringir seu acesso a políticas voltadas à defesa e proteção de seus direitos à terra e acesso a cuidados de saúde, por exemplo.

A adoção desta resolução é particularmente preocupante no contexto de um governo que tem buscado insistentemente enfraquecer os direitos dos povos indígenas e a proteção de seus territórios no Brasil. Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, o governo federal não demarcou nenhum novo território indígena, embora a constituição exija a demarcação e proteção dessas áreas[12]. A FUNAI tem também tomado decisões que podem ir contra sua missão de defender e proteger os direitos dos povos indígenas no Brasil.

Em abril de 2020, a FUNAI editou a Instrução Normativa n° 9/2020 permitindo que pessoas físicas obtivessem a certificação de limites de imóveis privados em terras indígenas que aguardam demarcação, o que, segundo o Ministério Público Federal (MPF), poderia incentivar grilagem de terras, e prejudicar o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas[13]. Integrantes do MPF contestaram a instrução normativa e conseguiram suspender seus efeitos em vários estados brasileiros[14].

A FUNAI e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ​​(IBAMA) também publicaram a Instrução Normativa Conjunta n° 01/2021, que pode abrir portas para empreendimentos, como atividades agrícolas, em terras indígenas, em parceria com não indígenas[15]. O Ministério Público Federal do estado de Mato Grosso solicitou esclarecimentos à FUNAI e ao IBAMA, citando o dispositivo constitucional que afirma que “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”[16].

Desde 2019, incursões ilegais e a destruição do meio ambiente em territórios indígenas têm aumentado consideravelmente, incentivadas por esse tipo de sinalização da FUNAI e outras medidas do governo Bolsonaro que têm prejudicado a proteção desses territórios.

Em 2019, houve um aumento de 135% nas invasões ilegais, extração ilegal de madeira, grilagem e outros danos diversos em áreas indígenas, de acordo com a organização não governamental Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – que historicamente tem trabalhado pela proteção dos direitos dos povos indígenas no Brasil compilando casos de violência contra esses povos em todo o país[17].

Por todas as razões descritas acima, a Human Rights Watch insta que a FUNAI aceite a decisão do Supremo Tribunal Federal e revogue imediatamente a Resolução n° 4/2021, bem como comunique esta decisão à Advocacia Geral da União para que desista de seu recurso.

Obrigado por sua atenção a este assunto tão importante.

Atenciosamente,

 

[1]Resolução FUNAI nº 4, de 22 de janeiro de 2021, https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-4-de-22-de-janeiro-de-2021-300748949 (acesso em 24 de fevereiro de 2021)

[2] “Barroso homologa parcialmente plano do governo federal para Covid-19 entre indígenas”, Supremo Tribunal Federal, 03 de março de 2021, http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462365&ori=1 (acesso em 31 de março de 2021)

[3] Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. 19, https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf (acesso em 24 de fevereiro de 2021)

[4] Convenção da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, 1989 (No. 169), Art. 1, https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf (acesso em 24 de fevereiro de 2021). A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada na Assembleia geral da OEA em 2016, também dispõe que os Estados “respeitarão o direito a essa autoidentificação como indígena, de forma individual ou coletiva, conforme as práticas e instituições próprias de cada povo indígena,”. Ver Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. 1 (2), https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf; e “OEA aprova Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas”, FUNAI, 28 de junho de 2021, www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/3815-oea (acesso em 24 de fevereiro de 2021)

[5] Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. 9 e 33 (1), https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf (acesso em 24 de fevereiro de 2021)

[6] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai, Mérito, Reparações e Custos, Sentença de 24 de agosto de 2010. Série C No. 214, par. 37, https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_214_por.pdf

[7] CIDH, “Situação dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas e Tribais da Região Pan-Amazônica”, 2019, parágrafos 21, 29, https://www.oas.org/en/iachr/reports/pdfs/panamazonia2019-en.pdf (acesso em 24 de fevereiro de 2021)

[8] Constituição Federal do Brasil, art. 231.

[9] FUNAI, “Quais os critérios utilizados para a definição de indígena?”, http://www.funai.gov.br/index.php/todos-ouvidoria/23-perguntas-frequentes/97-pergunta-3 (acesso em 24 de fevereiro , 2021)

[10] Ibid.

[11] Decreto n° 9.010 / 2017

[12] Daniel Biasetto, “Sob Bolsonaro, Funai e Ministério da Justiça travam demarcação de terras indígenas”, O Globo, 3 de janeiro de 2021, https://oglobo.globo.com/brasil/sob-bolsonaro-funai-ministerio-da-justica-travam-demarcacao-de-terras-indigenas-24820597 (acesso em 25 de janeiro de 2021); Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art. 231, http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/brazil_federal_constitution.pdf (acesso em 22 de junho de 2019).

[13] Instrução Normativa n° 9/2020, https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-n-9-de-16-de-abril-de-2020-253343033; e Ministério Público Federal em Mato Grosso, “IN 9: Justiça acata pedido do MPF e determina que Funai comprove cumprimento de liminar em cinco dias”, http://www.mpf.mp.br/mt/sala-de-imprensa/noticias-mt/ino-09-justica-acata-pedido-do-mpf-e-determina-que-funai-comprove-cumprimento-de-liminar-em-cinco-dias (acesso em 1 de março de 2021)

[14] Ibid.

[15] Rubens Valente, “Instrução do governo abre espaço para fazendeiros em terras indígenas”, UOL, 25 de fevereiro de 2020, https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2021/02/24/portaria-funai-empreendimentos-indigenas.htm; Instrução Normativa n° 1/2021, https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-conjunta-n-1-de-22-de-fevereiro-de-2021-304921201 (acesso em 1 de março de 2021)

[16] Ministério Público Federal em Mato Grosso, “MPF pede explicações a Funai e Ibama sobre instrução normativa que trata da exploração de terras indígenas”, http://www.mpf.mp.br/mt/sala-de-imprensa/noticias-mt/mpf-pede-explicacoes-a-funai-e-ibama-sobre-instrucao-normativa-que-trata-da-exploracao-de-terras-indigenas  (acesso em 3 de março de 2021).

[17] Rubens Valente, “Invasões em terras indígenas sobem 135% no 1º ano de Bolsonaro, diz Cimi”, UOL, 30 de setembro de 2020, https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/09/30/indigenas-relatorio-violencia-brasil-governo-bolsonaro.htm  (acesso em 26 de janeiro de 2021).

 

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