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É difícil mensurar o quanto as revelações de Snowden sobre as técnicas norte-americanas de vigilância em massa no período pós-11 de setembro abalaram a dinâmica geopolítica sobre a liberdade, segurança e governança na Internet ao longo do último ano.

Mesmo antes de Snowden, muitos governos já reconheciam as capacidades revolucionárias, desintermediadoras, e disruptivas da Internet, e o consequente empoderamento de seus cidadãos. Infelizmente, alguns escolheram responder ao florescimento da liberdade de expressão na Internet reprimindo as atividades nas redes sociais, monitorando ativistas online, e impondo novas restrições às comunicações digitais.

Depois de Snowden,  governos, democráticos ou não, se tornaram mais assertivos internacionalmente nos assuntos relacionados à governança da Internet, em nome da luta contra o terrorismo, da proteção da privacidade de seus cidadãos ou do aumento da cybersegurança. O governo chinês, por exemplo, tem defendido o conceito de “cyber-soberania”, pelo qual cada país soberano deve poder estabelecer sua própria Internet, governada por suas próprias regras, de acordo com a sua própria definição de liberdade online.

O exemplo que os EUA têm oferecido ao mundo na defesa do direito à privacidade online é também perturbador. Visto tradicionalmente como defensor da liberdade na Internet, os EUA agora têm trilhado o caminho da vigilância em massa, com o apoio consciente ou não das grandes corporações da Internet. Se o caminho dos EUA for seguido, a privacidade pode desaparecer rapidamente na era digital.

O Brasil, entretanto, representa um ponto de esperança na esfera geopolítica de governança da Internet pós-Snowden. Em setembro, a presidente Dilma Rousseff discursou na Assembleia Geral da ONU, e estabeleceu dois princípios essenciais da liberdade, segurança e governança da Internet:

  1. Na ausência do direito à privacidade, não pode haver real liberdade de expressão e opinião e, portanto, democracia;
  2. O direito à segurança dos cidadãos de um país não pode de forma alguma ser assegurado às custas da violação dos direitos humanos fundamentais de cidadãos de um outro país.

Estes dois princípios carregam parâmetros fundamentais de direitos humanos, devendo nortear os cálculos sobre segurança nacional em ações de vigilância.

O Brasil ficou à frente da discussão internacional ao apresentar, com a Alemanha, uma resolução da ONU que foi a primeira grande iniciativa das Nações Unidas em defesa ao direito à privacidade em 25 anos. O Brasil ajudou a criar “uma nova onda” na discussão global sobre a privacidade digital, e a liderou com base em sólidos princípios democráticos.

No âmbito doméstico, o Brasil também deu um importante passo, com a aprovação do que é conhecido como o Marco Civil da Internet. A recente legislação inclui a proteção do direito à privacidade e à livre expressão online e serve para reforçar o Estado de Direito na esfera digital. O marco civil foi resultado de um processo de participação democrática, e representa um importante contraponto a processos legislativos que correm em segredo, de forma incoerente às promessas de transparência.

O Marco Civil deixa claro o apoio brasileiro à neutralidade da rede como princípio norteador para o desenvolvimento futuro da Internet. No entanto, embora a lei seja um importante passo, ela não é perfeita e algumas questões permanecem em aberto. Resta saber se sua regulamentação e implementação servirão de fato para proteger os direitos digitais dos usuários.

Por exemplo, a legislação requer que provedores de aplicações de Internet mantenham os respectivos registros de acesso a seus serviços por seis meses. Isso pode ensejar que informações sejam utilizadas de maneira abusiva, além de impor um alto custo para provedores, especialmente para startups inovadoras, de armazenar esses dados sensíveis em ambiente controlado e seguro. Medidas efetivas de proteção à privacidade deverão ser implementadas para que essas determinações sejam observadas de maneira coerente com o respeito aos direitos humanos.

Finalmente, o Brasil organizou e liderou o “NetMundial”, um encontro global entre governos, organizações não-governamentais, especialistas em tecnologia, representantes do setor privado e acadêmicos sobre o futuro da governança da Internet, e demonstrou com sucesso como uma abordagem multissetorial à tomada de decisão pode funcionar. Não muito antes disso, a Índia havia defendido uma governança “multilateral” da Internet. Longe de “internacionalizar e democratizar” a rede, esta abordagem poderia incrementar o poder de governos não-democráticos no controle sobre a Internet, excluindo grupos não governamentais, especialistas em tecnologia, acadêmicos e o setor privado do processo. Os brasileiros rejeitaram a proposta multilateral em favor de uma abordagem multissetorial inclusiva.

Estas questões são cruciais para a proteção dos direitos humanos porque a Internet se tornou uma ferramenta essencial para o exercício desses direitos, seja por meio da denúncia de abusos, da preservação da privacidade, seja como forma de sustento, organização de manifestações e protestos ou busca de parceiros.

A proteção dos direitos humanos depende hoje da funcionalidade da Internet. Esta funcionalidade estará comprometida se apenas governos atuarem na sua regulação e governança. Sozinhos, governos não são capazes de preservar o melhor que a Internet tem a oferecer, inclusive em termos de segurança e proteção.

Estamos em um momento crítico do período pós-Snowden em relação à proteção tanto da plataforma global interoperável, quanto  dos direitos humanos online. O governo brasileiro demonstrou grande liderança, assim como o fizeram a sociedade civil brasileira e o CGI.BR. O ano a nossa frente exigirá ainda mais compromisso e liderança para garantir que a governança e regulação da Internet protejam e fortaleçam nossos direitos, em vez de comprometê-los.

Uma versão deste artigo foi publicada no Jornal O Globo na data de hoje.

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