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(São Paulo) – As autoridades brasileiras devem reformar leis que têm sido usadas para impor punições desproporcionais a policiais militares que se manifestam publicamente para defender mudanças no modelo policial ou fazer reclamações, disse hoje a Human Rights Watch.

“Um país com quase 60.000 homicídios por ano precisa urgentemente considerar novas abordagens à segurança pública”, afirmou Maria Laura Canineu, diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch. “Aqueles que enfrentam diariamente o crime nas ruas podem oferecer perspectivas valiosas sobre as políticas de segurança e reforma policial, e devem ter o direito de expressar suas opiniões sem o receio de serem punidos arbitrariamente”.

Os 436.000 policiais militares do Brasil exercem o policiamento ostensivo nas ruas, uma atividade de caráter essencialmente civil, mas estão sujeitos à jurisdição militar por serem tecnicamente considerados forças auxiliares do exército. O código penal militar brasileiro e diversos códigos disciplinares estaduais impõem amplas limitações à liberdade de expressão dos policiais.

Policiais que excedem esses limites podem acabar sendo presos conforme determina o código penal militar. De acordo com os códigos disciplinares, os comandantes da polícia militar também têm amplo poder discricionário para impor punições severas. Segundo o artigo 166 do código penal militar, criticar um superior ou uma decisão do governo configura crime com pena de até um ano de detenção. Incitar à “indisciplina” é passível de punição de dois a quatro anos de reclusão de acordo com o artigo 155. Códigos disciplinares estaduais que regulam a conduta de policiais militares em serviço, fora de serviço e da reserva contêm infrações similares, passíveis de punição de até 30 dias em detenção e expulsão da força policial. Essas condutas infracionais são definidas de forma tão ampla que permitem punições severas completamente desproporcionais à gravidade dos atos – e, em alguns casos, é exatamente isso o que ocorre.

As leis internacionais de direitos humanos conferem aos países considerável – embora limitado – poder discricionário para impor restrições à liberdade de expressão de membros das forças de segurança. Elas não autorizam, no entanto, que autoridades imponham sanções desproporcionais à gravidade das infrações.

Darlan Abrantes, um policial militar do estado do Ceará, foi condenado a dois anos de prisão em julho de 2016 após publicar de forma independente um livro afirmando que a polícia militar deveria ser desmilitarizada. Um juiz substituiu a pena privativa de liberdade por liberdade condicional, mas ele já havia sido expulso da polícia militar do estado em 2014 por causa do livro, o que destruiu sua carreira. Outros policiais também disseram à Human Rights Watch que sofreram punições arbitrárias como retaliação por terem manifestado suas opiniões de forma que desagradou seus superiores, e que não tiveram acesso a um sistema recursal efetivo e imparcial dentro da polícia militar.

Ex-policial militar Darlan segura seu livro. © Cesar Munoz/HRW 2016

Autoridades brasileiras devem reformar as leis para garantir que qualquer punição imposta a policiais militares que excedam os limites legais à liberdade de expressão seja proporcional à gravidade da infração cometida, disse a Human Rights Watch. As leis devem garantir que todos os policiais tenham acesso a um sistema recursal efetivo e imparcial.

As autoridades devem considerar também se é necessário e apropriado que os policiais militares brasileiros estejam sujeitos aos limites à liberdade de expressão impostos pelo código penal militar, que data de 1969, e pelos códigos disciplinares dos estados, ou se um sistema jurídico menos restritivo deveria ser adotado, conforme as normas internacionais e regionais de direitos humanos.

Atualmente há diversas propostas de reforma nesse sentido, que resultariam em um policiamento mais efetivo e responsável perante a sociedade. Elas incluem iniciativas legislativas que tramitam no Congresso propondo desvincular a polícia militar do exército e abolir a detenção administrativa, ou ainda propostas nas esferas estaduais para reformar os códigos disciplinares.

As punições excessivamente severas aplicadas contra alguns policiais têm um grave efeito inibidor em outros membros da força, que frequentemente se abstêm de expressar sugestões ou opiniões sobre reformas da polícia por medo de represálias, disse a Human Rights Watch.

“Policiais podem ser presos e ter suas carreiras destruídas por expressarem opiniões que desagradem seus comandantes”, disse Maria Laura Canineu, diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch. “Essas punições são completamente desproporcionais a qualquer que seja a motivação das autoridades em limitar a liberdade de expressão dos policiais”.

Análise Detalhada

Darlan Abrantes, um policial militar do estado do Ceará, publicou o livro “Militarismo – um sistema arcaico de segurança pública”, em 2008, com uma tiragem de 300 cópias, que ele mesmo pagou. No livro, Abrantes afirma que o Brasil tem um sistema policial “medieval”, no qual “ao policial de baixa patente não é permitido pensar”. Eles devem simplesmente seguir ordens e, se criticarem o militarismo, são detidos – escreveu ele. Darlan argumenta que transformar a polícia militar em uma força policial civil a tornaria mais eficiente na redução da criminalidade e a aproximaria mais da população.

O comando geral da polícia militar do estado do Ceará expulsou Darlan da força em 2014 conforme o artigo 24 do código disciplinar do estado, concluindo que o livro continha “graves ofensas” e que, ao publicá-lo, Darlan havia demonstrado “total indisciplina e insubordinação”. Darlan contou à HRW que na época, seu histórico na polícia indicava comportamento “excelente”.

Um tribunal militar – composto por quatro oficiais e um juiz – condenou Darlan, em julho de 2016, a dois anos de reclusão, conforme previsto no artigo 155 do Código Penal Militar, por “incitar à desobediência, à indisciplina ou à prática de um crime militar”. A denúncia alegava que Darlan distribuiu seu livro na academia de polícia, acusação que Abrantes nega.

O código penal militar não especifica quais ações constituem incitação à desobediência, indisciplina ou à prática de um crime militar. Isso confere aos promotores militares ampla margem de interpretação para criminalizar a manifestação de opiniões críticas ao comando da polícia.

No caso de Darlan, o juiz impôs uma suspensão condicional da pena, determinando que ele não será preso desde que respeite cinco condições: não voltar a delinquir, não ingerir bebidas alcoólicas, não frequentar casas de jogos ou tavolagem, não portar armas de fogo ou armas brancas e comparecer ao tribunal uma vez por mês.

“Eu pra eles sou um criminoso só porque eu tive a ousadia de pensar diferente, a ousadia de dizer que o sistema (militar) não funciona mais no nosso país”, Darlan disse à Human Rights Watch. “Sou a prova viva de que a polícia militar não respeita a democracia nem a liberdade de expressão”.

A demanda de Darlan Abrantes por “desmilitarização” está longe de ser a exceção. Em uma pesquisa nacional de 2014, mais de 76 por cento dos policiais militares entrevistados discordavam com a subordinação das forças policiais militares estaduais ao exército, como forças auxiliares, e a sua organização de modo semelhante ao exército. Por estarem vinculadas ao exército como forças auxiliares, as forças policiais estão sujeitas ao código penal militar que foi adotado durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Essa questão é de grande relevância para o debate público e pode ter importantes implicações no plano dos direitos humanos, dada a prevalência de abusos cometidos por policiais no Brasil. Policiais de alta e baixa patente entrevistados pela Human Rights Watch criticaram a estrutura e o treinamento militares. De acordo com eles, a natureza militar das forças policiais perpetua uma visão de policiais como heróis que combatem o inimigo – que neste caso são os supostos criminosos – o que pode levar ao uso excessivo da força, especialmente em comunidades pobres, e a altos níveis de estresse entre os policiais. Em vez disso, policiais deveriam focar na prevenção de crimes e no uso de força letal apenas quando estritamente inevitável para proteger vidas.

Códigos disciplinares estaduais, alguns dos quais dos tempos da ditadura, contêm também amplas restrições à liberdade de expressão e permitem punições desproporcionais tanto para policiais ativos quanto para policiais da reserva.

O código disciplinar do estado de São Paulo, por exemplo, proíbe a publicação ou disseminação de informação que possa “concorrer para o desprestígio da polícia militar ou ferir a hierarquia ou disciplina, sem especificar ou definir que tipos de informação podem trazer essas consequências.

Os regulamentos disciplinares de São Paulo e de 14 outros estados também contêm a mesma proibição – não permitindo a policiais “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos, militares ou policiais, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, quando devidamente autorizado”. Isso pode ser interpretado como sujeição dos policiais militares a punições por qualquer comentário público sobre policiamento ou segurança pública.

Muitos códigos disciplinares estaduais também conferem aos comandantes autoridade para determinar a gravidade da infração administrativa, o que lhes dá amplo poder discricionário para impor punições severas ou desproporcionais. Sanções incluem detenções de até 30 dias em quartéis ou expulsão da força policial.

Outro caso de punição desproporcional envolve o policial militar do estado do Pará Luiz Fernando Passinho. Todos os anos, no dia da Independência do Brasil, manifestações ao redor do país celebram o “Grito dos Excluídos”, no qual pessoas protestam contra a exclusão social. Luiz Fernando tomou o microfone em uma dessas manifestações no dia 7 de setembro de 2014 e, em um discurso de dois minutos, reclamou que, durante seus treinamentos, bombeiros e policiais militares escutam que não têm direitos. “Essa frase deturpa o caráter da nossa missão, deturpa nosso senso de cidadania e isso se reflete diretamente na nossa relação com a população”, afirmou Luiz Fernando, vestido à paisana, em seu discurso. “Nós não podemos aceitar que a nossa livre expressão seja criminalizada”.

O Comandante Geral da Polícia Militar do estado do Pará julgou que o discurso de Passinho “atentou contra a disciplina e a hierarquia militar ao se manifestar de modo a colocar no seio dos quartéis a discórdia e a desmoralização contra seus superiores”. O comandante acusou Luiz Fernando de ferir uma longa lista de valores que todo policial militar é obrigado a respeitar, conforme os artigos 17 e 18 do Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar do Pará, incluindo “profissionalismo”, “lealdade” e “disciplina”. O comandante afirmou que Luiz Fernando Passinho havia violado nove proibições conforme o artigo 37, incluindo “portar-se sem compostura em lugar público” e a publicação de informações ”que possam concorrer para o desprestígio da corporação ou firam a disciplina”. O comandante ordenou a detenção de Luiz Fernando por 30 dias em outubro de 2016. Luiz Fernando apelou da decisão ao mesmo comandante que a ordenou, conforme procedimento previsto pelo código disciplinar estadual.

Luiz Fernando contou à Human Rights Watch que, nesse meio tempo, o comando o tem perseguido por ter se manifestado. Em setembro, por exemplo, o comando ordenou sua detenção por 15 dias por não ter usado chapéu enquanto estava com o uniforme, afirmou ele, uma infração normalmente punida com uma advertência.

“O comando militar usa as regras de forma arbitrária”, disse Luiz Fernando. “Policiais que cometem verdadeiros crimes escapam de punições”.

Dezenas de policiais de baixa patente do Rio de Janeiro entrevistados pela Human Rights Watch em 2015 e 2016 disseram que tinham medo de serem punidos por manifestarem suas opiniões. Quase todos pediram para que seus nomes não fossem divulgados por medo de represálias, ainda que o comando militar do estado tivesse dado à Human Rights Watch a autorização por escrito para a realização da pesquisa.

Restrições à liberdade de expressão também silenciam o debate interno. Um estudo nacional publicado em 2016 pelo governo federal concluiu que policiais de baixa patente acreditam que raramente podem expressar uma opinião diferente de um policial superior no trabalho. Eles relataram ter frequentemente medo de fazê-lo. Mais de 14.000 praças participaram do estudo.

Muitos policiais têm medo não apenas de enfrentarem procedimentos disciplinares formais, como também de sofrerem outras retaliações caso se expressem ou denunciem problemas. Leandro Bispo, um policial militar do estado do Pará, enfrentou sanções disciplinares em 2012, 2013 e 2014 associadas a três postagens de Facebook que ele escreveu ou compartilhou. Uma afirmava que a polícia apresentava condições de trabalho inadequadas. Outra alegava corrupção e abusos dentro da polícia. E a terceira trazia uma crítica que ironizava as instituições públicas brasileiras, sem mencionar a polícia especificamente.

Os procedimentos disciplinares contra Leandro resultaram em seu rebaixamento de cabo para soldado em 2016 e exigiram que ele devolvesse o valor do aumento de salário de seis meses que ele já havia recebido, contou Leandro à Human Rights Watch. Ele afirmou também que sofreu retaliações informais contra as quais não teve como recorrer. Seu comandante o transferiu para a cidade de Porto de Moz, a quatro horas de carro e lancha da sua casa, o que ele acredita ser uma resposta aos comentários que escreveu ou compartilhou no Facebook. Quando Leandro contestou a transferência, teve de enfrentar mais um procedimento disciplinar, no qual o comandante argumentava que Bispo o havia acusado erroneamente de ter violado os regulamentos internos.

Em dezembro, Leandro foi expulso da força policial por conta de diversas supostas infrações a obrigações do código disciplinar estadual, incluindo a de “cultuar” símbolos e tradições da polícia militar, de respeitar a disciplina e evitar comentários inconvenientes sobre a polícia, desacreditando um oficial superior e fazendo comentários anônimos. Leandro planeja recorrer na justiça comum.

Leandro, que tem uma filha e uma esposa grávida, emprestou dinheiro de sua sogra para pagar o valor da entrada das despesas com o advogado e precisa pagar o restante em parcelas mensais. Ele afirmou que perder o emprego em tempos de crise econômica no Brasil aumenta o estresse da situação.

O governo federal publicou diretrizes nacionais em 2010 convocando os estados a reformarem leis e regulamentos disciplinares de forma a respeitarem os direitos contemplados pela Constituição. As diretrizes recomendam que os estados não apenas garantam os direitos dos policiais à livre expressão – especialmente na internet –, como também estimulem os policiais a participarem “nos processos democráticos de debate, divulgação, estudo, reflexão e formulação das políticas públicas” sobre segurança, em conferências, conselhos, seminários ou pesquisas.

A implementação das recomendações, no entanto, tem sido frustrante.

Normas de Direitos Humanos

Segundo as normas internacionais de direitos humanos, o direito à liberdade de expressão pode ser restringido legalmente apenas quando necessário para o respeito aos direitos ou à reputaçãodas demais pessoas, ou para a proteção da segurança nacional, da ordem, saúde ou moral públicas. Essas normas são aplicáveis de acordo com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O Brasil é signatário de ambos.

Em casos de 2005 e 2009, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que medidas de governos para restringirem a expressão de ex-militares caracterizavam limitações ilegais aos seus direitos. No entanto, de forma geral, é aceito que governos tenham maior flexibilidade para limitar a liberdade de expressão de membros de forças de segurança se assim for considerado necessário para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública. Isso resulta, entre outras coisas, no reconhecimento da legitimidade do interesse do Estado em manter a disciplina e a hierarquia dentro da polícia e na garantia de que a polícia e as forças militares não sejam politizadas enquanto instituições.

No entanto, isso não exime o governo da responsabilidade de garantir que limitações à liberdade de expressão de membros de forças de segurança sejam de fato “necessárias” para proteger a segurança nacional e a ordem pública, e não mais restritivas do que o necessário para alcançar esses objetivos. Como observado pelo relator especial para liberdade de expressão da Comissão Interamericana para Direitos Humanos em 2009, membros das forças armadas “têm o direito à liberdade de expressão e são legitimamente capazes de exercer esse direito, e os limites impostos a eles devem respeitar os critérios estabelecidos pela Convenção Americana”. Limitações a esse direito “não podem ser excessivas ou desnecessárias e devem atender em todos os casos aos critérios estabelecidos no artigo 13.2 da Convenção”.

Em dezembro de 2016, uma desembargadora do estado do Rio Grande do Norte decidiu pôr um fim aos procedimentos disciplinares contra um policial militar da ativa, João Figueiredo, que recebeu uma punição de 15 dias de detenção determinada pelo comando da polícia militar do estado por ter “ofendido” a força em um comentário postado na internet. A desembargadora baseou sua decisão nas “violações aos direitos humanos do paciente, violações à Carta Magna quanto a liberdade de expressão do pensamento e opinião e, também, pelos vícios formais e do claríssimo cerceamento de defesa imposto pela autoridade coatora e a desproporcionalidade da penalidade imposta”. O comando da polícia militar não recorreu da decisão.

Mesmo em contextos nos quais limitações legais à liberdade de expressão sejam aceitáveis, as punições devem ser sempre proporcionais à gravidade das infrações.

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