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Carta aberta sobre direitos humanos endereçada ao Papa Francisco por grupos da Sociedade Civil, pela ocasião da visita de Sua Santidade a Moçambique

A Sua Santidade, Papa Francisco

Nós, abaixo assinados, escrevemos a Vossa Santidade como grupo de organizações não governamentais que trabalham para promover e defender os direitos humanos em muitos países por todo o mundo, incluindo Moçambique. Tendo em mente a visita de Vossa Santidade a Moçambique, agendada para 4 a 6 de Setembro de 2019, gostaríamos de submeter à sua atenção diversas questões de direitos humanos e solicitamos que aproveite a oportunidade da sua visita para apoiar publicamente o nosso apelo no sentido de proteger e promover os direitos humanos, em particular neste momento em que o país se prepara para realizar as suas sextas eleições gerais em Outubro de 2019, desde o fim da guerra civil, em 1992.

Estamos seriamente preocupados com a intimidação e assédio crescentes a defensores dos direitos humanos, activistas, organizações da sociedade civil e média, a deterioração da situação dos direitos humanos em Cabo Delgado, a falta de responsabilização, de justiça e reparações eficazes para as vítimas de violações e abusos de direitos humanos, assim como com as violações dos direitos dos refugiados e solicitantes de refúgio.

Repressão da liberdade de expressão, associação e reunião pacífica e da liberdade dos média

No último ano, tem-se registado uma repressão crescente sobre a dissidência, em particular sobre os direitos de reunião pacífica e associação, liberdade de expressão e liberdade dos média pelo governo moçambicano. A liberdade de circulação dos defensores dos direitos humanos, intervenientes políticos, jornalistas e grupos da sociedade civil tem também sido alvo de atentados crescentes.

No rescaldo das eleições municipais de Outubro de 2018, vários defensores dos direitos humanos, activistas da sociedade civil e jornalistas locais receberam anonimamente ameaças de morte, mensagens e telefonemas intimidatórios. Isto aconteceu por aparente retaliação pela sua participação no processo eleitoral, nomeadamente a monitorização das assembleias de voto e publicação em directo dos resultados das eleições municipais.

Entre os que foram perseguidos pela sua participação na monitorização das eleições municipais de 2018 estiveram o Padre Benvindo Tapua e o Padre Cantífulas de Castro, Director e Director Adjunto da Rádio Encontro, respectivamente. Jornalistas das estações de rádio católicas Watana e Rádio Encontro foram intimidados e assediados. Outros foram agredidos, incluindo um repórter da estação de televisão Miramar, que foi atacado por um membro do principal partido da oposição, a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), quando fazia uma reportagem sobre um motim na delegação local da RENAMO no Chimoio, província de Manica.

Assistimos também a repressão por parte das autoridades moçambicanas dos direitos de liberdade de reunião pacífica e de associação. De 21 a 24 de Janeiro de 2019, a polícia cercou os escritórios do Centro de Integridade Pública (CIP), uma organização da sociedade civil independente que lançou uma campanha contra o reembolso de empréstimos secretos de USD 2,2 mil milhões contraídos ilegalmente, durante o mandato do ex-presidente Armando Guebuza. A polícia ordenou também a pessoas com t-shirts da campanha que as despissem e exigiu que os funcionários do CIP parassem de distribuir as t-shirts.

Em Março de 2019, as autoridades dispersaram uma manifestação e bloquearam inicialmente outra na capital, Maputo. Em 1 de Março, agentes da polícia armados com espingardas dispersaram uma marcha organizada por uma escola primária local para celebrar o carnaval anual da cidade. Quatro dias mais tarde, o presidente da câmara de Maputo rejeitou planos do principal grupo de defesa dos direitos da mulher, o Fórum Mulher, de marchar contra a violência doméstica no Dia Internacional da Mulher.

Receamos a escalada desta repressão e do clima de estrangulamento dos direitos de liberdade de expressão, reunião pacífica e associação e da liberdade dos média no período pré-eleitoral.

Violações e abusos de direitos humanos na província de Cabo Delgado

Os distritos do norte da província de Cabo Delgado têm registado ataques armados chocantes desde Outubro de 2017. Os ataques são perpetrados por pessoas que se pensa serem membros de um grupo armado conhecido como Al-Shabaab, que invadem aldeias, lançam fogo às casas, atacam e matam pessoas com machetes e pilham os seus alimentos. O governo reagiu reforçando a presença militar na região, mas a resposta das autoridades tem sido preocupante. As forças de segurança têm alegadamente intimidado, assediado e detido arbitrariamente pessoas que suspeitam de pertencerem ao grupo armado. Há, além disso, alegações de os detidos serem sujeitos a tortura e outros maus-tratos. Profundamente preocupantes são também os relatos de casos de execuções sumárias. As forças de segurança têm ainda intimidado, detido e até acusado jornalistas, defensores de direitos humanos e investigadores que pesquisavam a crise humanitária, bem como as violações e abusos de direitos cometidos pelas forças de segurança estatais.

No dia 5 de Janeiro de 2019, o jornalista Amade Abubacar foi detido sem mandado por agentes da polícia do distrito de Macomia quando entrevistava residentes de aldeias que tinham fugido das suas casas devido à intensificação de ataques perpetrados por indivíduos que se pensa serem membros de um grupo armado. Amade permaneceu em detenção preventiva durante quase 100 dias, incluindo 12 dias sem contacto com o exterior sob detenção militar. No dia 23 de Abril, foi-lhe concedida liberdade provisória da prisão de Mieze, na cidade de Pemba. Continua acusado dos crimes de “instigação pública a um crime com uso de meios informáticos”, “instigação" e “injúria contra agentes da autoridade”.

Em Dezembro de 2018, Estácio Valoi, jornalista de investigação, e David Matsinhe, investigador da Amnistia Internacional, foram detidos pelo exército e mantidos incomunicáveis por dois dias no distrito de Mocímboa da Praia, acusados de espionagem e de cumplicidade com o grupo extremista. Foram libertados sem acusação formal, mas o seu equipamento permanece confiscado pelo exército para “investigação adicional.”  A área continua a ser praticamente considerada interdita à imprensa, com implicações negativas para o direito dos cidadãos à informação.

Responsabilização e justiça para as vítimas de violações e abusos de direitos humanos

Estamos muito preocupados com a contínua impunidade por crimes contra os direitos humanos, nomeadamente execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, tortura e outros maus-tratos, que geraram um ambiente público de medo e insegurança. Várias organizações documentaram inúmeros casos que continuam por resolver, nomeadamente:

No dia 8 de Outubro de 2016, Jeremias Pondeca, membro sénior do partido da oposição, Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), integrado também na equipa de mediação que procurava acabar com os confrontos entre o seu partido e o governo, foi morto a tiro em Maputo por homens desconhecidos, suspeitos de serem membros de um esquadrão da morte, composto por agentes de segurança do Estado.

No dia 27 de Março de 2018, homens armados desconhecidos raptaram o advogado defensor de direitos humanos Ericino de Salema, à saída dos escritórios do Sindicato Nacional dos Jornalistas, em Maputo. Os homens espancaram-no e abandonaram-no em seguida na berma da estrada circular de Maputo. Em consequência destas agressões, o Sr. Salema sofreu fracturas graves nos braços e pernas. Na altura do ataque, o Sr. Salema era comentador político residente no programa de televisão da STV Pontos de Vista, no qual tem expressado frequentemente posições de crítica às políticas governamentais. Receia-se que o ataque tenha ocorrido provavelmente em retaliação pelas suas opiniões críticas no âmbito das suas actividades profissionais.

Em 4 de Outubro de 2017, um atirador não identificado assassinou o então presidente da câmara municipal de Nampula, Mahamudo Amurane, em sua casa. Desde a sua eleição como presidente da câmara de Nampula, em 2013, Mahamudo Amurane tinha embarcado numa iniciativa pública para erradicar a corrupção da administração da cidade e revitalizar as infra-estruturas públicas.

Violações dos direitos dos refugiados e solicitantes de refúgio

Apesar do compromisso internacional do governo de respeitar e proteger os direitos dos refugiados e solicitantes de refúgio, documentámos relatos preocupantes de detenções arbitrárias e deportação de refugiados pelas forças de segurança e funcionários da imigração estatais.

No dia 17 de Janeiro de 2019, agentes da polícia e funcionários da imigração prenderam 15 refugiados e solicitantes de refúgio (14 homens e uma mulher) da República Democrática do Congo (RDC) e um refugiado da Etiópia, que se encontravam na altura a residir no campo de refugiados de Maratane, na província de Nampula. Segundo os seus testemunhos, foram presos sem mandado, algemados e espancados. Não foram imediatamente informados das razões da sua prisão e detenção.

Os 16 refugiados e solicitantes de refúgio encontram-se presentemente detidos na terceira esquadra em Pemba. Estas 16 pessoas estão detidas há mais de sete meses e continuam sem notificação da razão para a sua detenção ou de qual é a acusação criminal contra elas. Não foram também presentes a um tribunal. Segundo as entrevistas aos detidos realizadas pela Amnistia Internacional, encontram-se em condição desumanas. Os detidos viram-se forçados a escavar um buraco no pátio da esquadra da polícia para utilizar como sanita. E têm estado a beber água amarela e possivelmente contaminada do lavatório da cela. Por vezes, os que têm meios para isso pagam a alguém que lhes compre garrafas de água.

No dia 23 de Janeiro de 2019, o governo de Moçambique deportou sete homens do grupo de 16 refugiados e solicitantes de refúgio, que provinham da República Democrática do Congo (RDC). Ninguém os notificou sobre a ordem de deportação nem lhes foi permitido contestá-la. Segundo o testemunho dos sete homens, os funcionários da imigração forçaram-nos a embarcar num voo para Kinshasa, RDC. Quando chegaram ao aeroporto de Kinshasa, o funcionário da imigração proibiu a sua entrada e ordenou que regressassem a Moçambique. Foram reenviados para a cidade de Pemba no dia 26 de Janeiro e conduzidos para a Terceira Esquadra da polícia, onde ainda se encontram detidos.

Tendo em conta o acima exposto, apelamos a Vossa Santidade para que aborde estas preocupações de direitos humanos junto do governo de Moçambique e solicite ao governo que investigue imediatamente estes casos e tome medidas concretas e substantivas no sentido de respeitar, proteger, promover e fazer cumprir os direitos humanos.

Rogamos ainda a Vossa Santidade para que reitere junto do governo a necessidade de assegurar aos membros da sociedade civil, incluindo jornalistas, investigadores e advogados, o direito de desenvolver o seu trabalho livremente e sem medo de ataques, intimidação ou assédio. O governo deve ainda assegurar investigações imediatas, aprofundadas, imparciais e independentes aos casos de execuções extrajudiciais, detenção e prisão arbitrária e outros casos de violações e abusos de direitos humanos e apresentar os suspeitos da sua autoria ao tribunal para serem submetidos a julgamentos justos.

Esperamos que a visita de Vossa Santidade a Moçambique ofereça uma oportunidade genuína ao governo de Moçambique de reafirmar o seu compromisso de defender os direitos humanos consagrados na Constituição da República, bem como de respeitar as obrigações e compromissos assumidos pelo governo no domínio dos direitos humanos, a nível regional e internacional.

Muito gratos a Vossa Santidade pela atenção dispensada a esta carta, subscrevemo-nos, com elevada estima e consideração,

 

Atenciosamente,

African Freedom of Expression Exchange (AFEX)

Africans Rising

Amnistia Internacional

Centro de Litigação da África Austral (SALC)

CIVICUS

Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ)

Federação de Jornalistas de Língua Portuguesa (FJLP)

Human Rights Watch

IFEX

Instituto Internacional da Imprensa (IPI)

Instituto de Comunicação Social da África Austral-Moçambique (MISA-Mozambique)

Parlamento Juvenil - Moçambique

Repórteres Sem Fronteiras

Solidariedade Moçambique (SOLDMOZ-ADS)

#ReageMoçambique

 

 

 

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