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O Falso Conforto da Tirania

Por que a Proteção de Direitos não é Equivocada em Tempos Difíceis

Displaced people from the Yezidi sect, fleeing violence from forces linked to the extremist group Islamic State (also known as ISIS) in the northern Iraqi town of Sinjar, walk towards the Syrian border in August 2014.

© 2014 Reuters

Artigo Introdutório

 
Tyranny’s False Comfort

Why Rights Aren’t Wrong in Tough Times

Ensaios

 
Internet en la encrucijada

Cómo la vigilancia del gobierno amenaza nuestra forma de comunicarnos

 
Deadly Cargo

Explosive Weapons in Populated Areas

 
Placer la barre plus haut

Événements sportifs de grande envergure et droits humains

Há décadas que o mundo não testemunhava tamanha instabilidade. A Primavera Árabe, tão aclamada pela mídia à época de seu surgimento, se transformou em conflito e repressão generalizados. Extremistas islâmicos cometem atrocidades e ameaçam a população civil em todo o Oriente Médio e em algumas partes da Ásia e África. As tensões da Guerra Fria ressurgiram na Ucrânia e até mesmo um avião comercial foi derrubado como consequência. Às vezes, parece até que o mundo está desmoronando.

A resposta de muitos governos à turbulência foi a redução ou o abandono dos direitos humanos. Em geral, os governos diretamente afetados por turbulências buscam avidamente uma desculpa para reprimir a pressão popular por uma mudança democrática. Outros governos influentes sentem-se mais à vontade recorrendo a relações antigas com autocratas do que competindo com a incerteza de um regime popular. Alguns desses governos continuam a suscitar preocupações legítimas em relaçãoaos direitos humanos, mas grande parte deles parece ter chegado à conclusão de que as graves ameaças à segurança dos dias atuais devem prevalecer sobre os direitos humanos. Neste momento difícil, eles parecem afirmar que os direitos humanos devem ser colocados em segundo plano, como algo supérfluo que pode esperar por um momento menos turbulento.

Essa relativização dos direitos humanos não é apenas equivocada, mas também insensata e danosa. As violações dos direitos humanos tiveram um papel importante em gerar ou agravar a maioria das crises atuais. O segredo para resolver essas crises está em proteger os direitos humanos e permitir que a população expresse sua opinião sobre a forma como seus governos devem lidar com elas. Especialmente em períodos conturbados e de escolhas difíceis, os direitos humanos são uma bússola essencial para a tomada de ação política.

A Ascensão do ISIS

Nenhum desafio no ano passado eclodiu de forma mais radical do que o surgimento do autoproclamado Estado Islâmico, o grupo extremista também conhecido como ISIS. A execução em massa, por parte do ISIS, de combatentes capturados e civis contrários ao grupo foi um choque para todos. Este grupo armado sunita já hostilizou yazidis, turcomenos, curdos, xiitas e até mesmo outros sunitas que desaprovam sua interpretação extremista da lei islâmica. Seus militantes escravizaram, estupraram e forçaram mulheres e meninas yazidis a se casarem. Além disso, decapitaram jornalistas e trabalhadores humanitários em espetáculos macabros gravados em vídeo. Raramente observamos uma força armada gerar tanto mal-estar e oposição generalizados. 

Apesar disso, o ISIS não surgiu do vazio. Em parte, é  produto da guerra e ocupação militar do Iraque liderada pelos Estados Unidos iniciada em 2003, o que gerou, entre outras coisas, uma insegurança e os abusos dos detentos na prisão de Abu Ghraib e em outros centros de detenção administrados pelos EUA.  O financiamento de grupos extremistas pelos países do Golfo e seus cidadãos também desempenhou um papel importante. Mais recentemente, as políticas sectárias dos governos iraquiano e sírio e a indiferença internacional aos graves abusos dos direitos cometidos por esses governos têm sido fatores determinantes. Se as condições que levaram à formação do ISIS não forem controladas, o grupo pode aprofundar o seu domínio sobre os dois países e expandi-lo para o Líbano, Jordânia, Líbia e outros territórios.

Iraque

No Iraque, o surgimento do ISIS deve-se, em grande parte, ao regime sectário opressor do ex-primeiro-ministro Nouri al-Maliki e à consequente radicalização  da comunidade sunita. Com o apoio iraniano, Maliki assumiu o controle pessoal das forças de segurança iraquianas e apoiou a formação de milícias xiitas, muitas das quais perseguiram brutalmente a população sunita minoritária. Os sunitas foram demitidos de cargos públicos selecionados, cercados e detidos arbitrariamente  sob novas leis demasiadamente amplas, sumariamente executados e bombardeados de forma indiscriminada. 

A gravidade da perseguição pode ser avaliada pelos seus efeitos. O antecessor do ISIS, a Al-Qaeda no Iraque (AQI), foi derrotado com a ajuda de uma coalizão militar de tribos sunitas no Iraque ocidental, conhecida como os Awakening Councils (Conselhos do Despertar). Contudo, muitas das tribos que quase isoladamente derrotaram a AQI tornaram-se tão temerosas de massacres e perseguição pelas forças de segurança pró-governo que, quando o conflito eclodiu em 2014, elas sentiram-se mais seguras lutando contra essas forças do que contra o ISIS.

Grupos de direitos humanos insistentemente chamaram atenção para o regime abusivo de Maliki, porém, os EUA, o Reino Unido e outros países, ansiosos por esquecer seu próprio envolvimento militar no Iraque, em grande parte ignoraram este domínio sectário – e até mesmo forneceram-lhe armas.

Atualmente, há um maior reconhecimento de que esta indiferença às atrocidades cometidas por Maliki foi um erro.  Por fim, ele foi forçado a renunciar seu cargo, sendo substituído por Haider al-Abadi, que comprometeu-se com uma forma mais inclusiva de governar. No entanto, como o Iraque ainda recebe auxílio militar do ocidente, o sectarismo abusivo ainda não terminou. Maliki continua a atuar como um dos três vice-presidentes do Iraque; além disso, o débil governo aumentou amplamente sua dependência das milícias xiitas, permitindo a mobilização de quase um milhão de combatentes xiitas sem fiscalização ou regulamentação do governo. De fato, devido à desordem em que o exército iraquiano se encontra, as milícias são as principais forças terrestres na luta contra o ISIS, apesar de seus assassinatos e massacres ininterruptos dos sunitas sob o argumento de que estes seriam simpatizantes abertos do ISIS. Até o fim destas atrocidades, é provável que as milícias xiitas contribuam mais para ajudar o recrutamento do ISIS do que para derrotá-lo no campo de batalha. 

Enquanto isso, o governo iraquiano não pôs fim a ataques militares indiscriminados em áreas civis, nem decretou a liberação de um grande número de indivíduos presos sem mandado judicial ou que permanecem na cadeia após o cumprimento de suas penas. O judiciário corrupto e abusivo permanece sem reformas e o chamado  de Abadi para o fim de um regime opressivo e de exclusão ainda não foi atendido. A longo prazo, a concretização destas reformas será, no mínimo, tão importante quanto à ação militar para proteger os civis das atrocidades do ISIS.

Síria

Na Síria, a ascensão do ISIS ocorreu devido a vários fatores, como fronteiras permeáveis com a Turquia, que possibilitaram o financiamento e o fornecimento de armas aos combatentes por governos estrangeiros.  Posteriormente, muitos deles passaram a fazer parte do grupo extremista. O ISIS também gerou fundos por meio de pedidos de resgate exorbitantes e “impostos” cobrados da população concentrada no território controlado, bem como a venda de antiguidades e petróleo sírio. 

Com esses elementos fundamentais, o ISIS chegou a se manifestar como a força mais hábil para desafiar a brutalidade extraordinária do Presidente Bashar al-Assad e suas tropas. De modo cruel, as forças de Assad deliberadamente atacaram civis que viviam em áreas controladas pela oposição, com o objetivo de despovoar estas áreas e punir supostos simpatizantes rebeldes. 

Desde que o governo sírio entregou suas armas químicas, sua ferramenta mais evidente foi a bomba barril, um tambor de óleo ou recipiente similar cheio de explosivos de alta potência e fragmentos metálicos. Também usada pela força aérea iraquiana, a bomba ganhou notoriedade na Síria, onde a força aérea normalmente a arremessa de um helicóptero em altas altitudes para evitar o fogo antiaéreo. A essa altura, é impossível que a bomba barril tenha um alvo preciso. Ela simplesmente é arremessada ao solo, fazendo seu assustador som sibilante, enquanto seu conteúdo se desloca, até cair no chão e ser detonado. 

As bombas barril são tão imprecisas que as forças armadas sírias não ousam usá-las nas proximidades das linhas de frente por medo de atingir suas próprias tropas. Em vez disso, elas são arremessadas especificamente nos territórios controlados pelos grupos rebeldes, com o conhecimento de que destruirão prédios residenciais, hospitais, escolas e outras instituições civis. Estas armas de uso indiscriminado tornaram a vida tão miserável para muitos civis que muitos dos que optam por não fugir do país escolhem se mudar com suas famílias para áreas próximas à linha de frente. Eles preferem enfrentar franco-atiradores e sua artilharia, em vez do horror das bombas barril.

Quando o governo sírio atacou civis com armas químicas, o Conselho de Segurança das Nações Unidas pressionou Assad para parar e entregar suas armas. Porém, na medida em que o governo sírio matou ainda mais civis por meio de ataques indiscriminados com armas convencionais, como bombas barril, além de munições de fragmentação, armas incendiárias e foguetes não guiados, o Conselho de Segurança, em grande parte, permaneceu à margem. Vários países condenaram o massacre, mas até agora não fizeram muito mais do que gerar  pressão para seu fim. 

A Rússia tem usado seu poder de veto do Conselho de Segurança, para afastar os esforços unificados que buscam dar um fim à carnificina. A Rússia e o Irã também se recusaram a usar suas enormes influências em Damasco para exigir um fim aos ataques indiscriminados, apesar das exigências do Conselho de Segurança, o qual inclui a Rússia, para o cessar desses ataques. O encaminhamento da Síria ao Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes internacionais graves de todos os lados, uma medida apoiada por mais de 65 países, é medida execrada por Moscou.

A coalizão liderada pelos EUA tem confrontado o ISIS, mas nenhuma nação – seja do lado dos adversários, como os EUA, ou do lado dos apoiadores como a Rússia e o Irã – aumentou a pressão sobre Assad para que cesse o massacre de civis. Os dois não podem – e não devem – ser tão facilmente separados.

Esta preocupação seletiva tem sido um presente para os recrutadores do ISIS, que se apresentam como os únicos dispostos e capazes de desafiar as atrocidades cometidas por Assad. É óbvio que simplesmente atacar o ISIS não será suficiente para dar um fim ao seu apelo. É preciso uma preocupação mais ampla com a proteção dos civis sírios.

Repressão Intensificada no Egito

No Egito, o governo brutal do general que se tornou o novo presidente,  Abdel Fattah al-Sisi, buscou esmagar as aspirações democráticas da Praça Tahrir. A revolta que derrubou o governo autoritário do Presidente Hosni Mubarak entregou ao Egito sua primeira eleição presidencial livre e justa, vencida por Mohamed Morsy da Irmandade Muçulmana. O governo de Morsy se desenvolveu de tal forma que deixou muitos egípcios com medo (com ou sem fundamento) do surgimento gradual de um rigoroso regime islâmico; no entanto, seus abusos nunca chegaram perto daqueles que agora assolam a população egípcia, cometidos pelo governo dominado pelos militares que derrubou Morsy em 30 de junho de 2013. 

O golpe militar liderado por Sisi devastou a Irmandade e seus partidários. No dia 14 de agosto de 2013, em apenas 12 horas, ao menos 817 manifestantes, que em sua maioria protestavam de forma pacífica contra a remoção de Morsy na Praça Rab’a, no Cairo, foram mortos a tiros pelas forças de segurança orientadas por Sisi e pelo Ministro do Interior Mohamed Ibrahim. 

As forças de segurança alegaram legítima defesa, porém o número de suas vítimas era mínimo comparado com o número de manifestantes baleados por franco-atiradores e outros homens armados. Muitos dos mortos e feridos foram atingidos enquanto procuravam ajuda médica. As autoridades egípcias haviam planejado a dispersão violenta da ocupação com muitas semanas de antecedência e, sem dúvida, anteciparam um surpreendente número de mortes. Foi o maior massacre de manifestantes na história mundial recente – o maior número de mortes desde, pelo menos, a repressão na China do movimento democrático da Praça Tiananmen em 1989. 

Desde o golpe, as forças de segurança de Sisi prenderam dezenas de milhares de supostos membros da Irmandade Muçulmana, bem como muitos ativistas seculares, muitas vezes sem acusação formal ou julgamento. Os tribunais egípcios proferiram centenas de penas de morte após julgamentos em massa que não fazem o menor esforço de individualizar as provas ou oferecer uma oportunidade significativa para defesa. 

A resposta da comunidade internacional a essa repressão sem precedentes foi vergonhosamente insuficiente. No Conselho de Direitos Humanos da ONU, 27 países pressionaram o Egito a investigar o massacre da Praça Rab’a, mas não obtiveram o voto da maioria no Conselho. Há pouco interesse por parte dos EUA, Reino Unido e outros governos europeus importantes em investigar os abusos do governo militar. Com efeito, enquanto Washington aplicará sanções seletivas a oficiais venezuelanos (um movimento que apoiamos) pela resposta brutal de suas forças de segurança aos protestos – que custou a vida de não mais do que algumas dezenas de manifestantes (embora tenha vitimado muitos outros) –, desaprova quaisquer sanções ao Egito, apesar do massacre de aproximadamente mil manifestantes na Praça Rab’a por parte do governo daquele país. 

O Congresso cortou parte do auxílio militar, apesar da resistência da administração Obama em qualificar o ocorrido como “golpe”, por medo das consequências que isso pode acarretar no âmbito legislação norte-americana. O Secretário de Estado John Kerry mencionou de forma reiterada uma transição para a democracia que estava supostamente em andamento no Egito, apesar da falta de provas que sustentassem tais alegações. Agora que o Congresso incluiu uma nova exceção relacionada à segurança nacional para as condições atuais de assistência militar, o governo dos EUA provavelmente restaurará grande parte – se não todo – o seu apoio militar ao Egito, mesmo que não haja diminuição efetiva na repressão  praticada pelo governo deste país. Esta corrida para reativar o fluxo da assistência militar é motivada pela priorização dos Estados Unidos em ter as forças armadas egípcias trabalhando para combater a insurgência no Sinai, favorecer a ofensiva de Israel contra o Hamas na Faixa de Gaza e apoiar a guerra anti-ISIS na Síria e no Iraque, em detrimento do interesse em proteger os direitos da população egípcia. O Reino Unido, a França e outros governos europeus também têm feito pouco para reverter a repressão sem precedentes por parte de Sisi.

 

A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos (EAU) têm avidamente  auxiliado o Egito a dispersar a Irmandade Muçulmana. Como monarquias que invocam o Islã para defender sua própria legitimidade, eles parecem temer um movimento religioso que governe em nome do Islã mas ainda adota eleições democráticas. Esses governos têm investido bilhões de dólares no projeto de repressor de Sisi e classificado a Irmandade como organização terrorista. Os Emirados Árabes Unidos têm perseguido supostos partidários da Irmandade dentro de suas fronteiras.

O apoio internacional ao governo repressivo de Sisi não é apenas um desastre para a esperança egípcia de um futuro democrático, tambémacaba por transmitir uma mensagem terrível para a região. O ISIS pode agora, de maneira plausível, argumentar que a violência é o único caminho para o poder dos islamitas, pois quando buscaram o poder por meio de eleições justas e ganharam, foram derrubados, sem grande alarde por parte da comunidade internacional. Mais uma vez, a conveniência mais imediata de algumas potências influentes – que reprimiram a Irmandade Muçulmana – ameaça criar uma catástrofe de ao longo prazo para o futuro político da região.

O Conflito entre Israel e Palestina

No ano passado, observou-se mais construções de assentamentos por Israel, mais retaliações violentas na Cisjordânia e outra rodada de conflito armado sangrento na Faixa de Gaza. O Hamas e outros grupos armados palestinos da Faixa de Gaza dispararam milhares de foguetes e morteiros indiscriminadamente em direção a centros populacionais israelenses. Em alguns casos, o Hamas e seus aliados colocaram em perigo, desnecessariamente, as vidas de civis palestinos com confrontos em áreas povoadas, além de executarem sumariamente supostos traidores. 

Dezenas de milhares de foguetes, bombas e ataques de artilharia israelenses, bem como uma definição bem ampla de “alvos militares legítimos”, ataques sem alvos militares evidentes e uma negligência em relação às vítimas civis, causaram a morte de cerca de 1.500 civis na Faixa de Gaza e destruição sem precedentes de suas habitações e infraestrutura. Na Cisjordânia ocupada, além da expansão dos assentamentos, Israel continuou suas demolições discriminatórias e punitivas das habitações palestinas. Além disso, continuou fazendo uso desnecessário de força letal contra os palestinos, matando dezenas deles, incluindo crianças.

Israel tem um histórico lamentável de não promover a responsabilização de seus soldados por graves violações das leis de guerra; já o Hamas nem sequer alegou investigar violações por parte de combatentes palestinos. O envolvimento do TPI poderia ajudar a dissuadir os dois lados de cometerem crimes de guerra, possivelmente oferecendo às vítimas um mínimo de justiça. Com seu status de Estado-Observador da ONU, a Palestina é elegível para integrar o TPI, tendo marcado o Ano Novo ao, finalmente, passar a fazer parte da corte. O TPI terá jurisdição sobre os crimes de guerra cometidos no território palestino ou a partir dele; em outras palavras, seus poderes serão aplicáveis a ambos os lados do conflito. 

No entanto,os EUA e os líderes da União Europeia tentaram impedir a adesão da Palestina ao tribunal de Haia,  exercendo pressão equivocada sobre o país. Sua justificativa foi que o envolvimento do TPI seria inútil para o processo de paz, predominantemente estagnado. Neste caso eles adotaram uma posição oposta àquela adotada em praticamente todas as outras situações de crimes de guerra em grande escala, nas quais reconhecem que a coibição destes crimes é de modo geral pré-requisito para que se crie a confiança necessária para conversações de paz produtivas. Ninguém explicou de forma plausível o motivo pelo qual o conflito entre Israel e a Palestina deveria ser uma exceção a essa regra. 

A intenção real dos governos ocidentais é proteger os israelensees de uma possível ação penal. Esse tipo de posicionamento seletivo compromete o poder e a legitimidade da justiça internacional no mundo todo. Isso incentiva a crítica, que argumenta que a justiça internacional é reservada para as nações fracas que não são aliadas próximas dos poderosos. 

Atrocidades do Boko Haram na Nigéria

O problema da supremacia da turbulência sobre os direitos humanos não se limita ao Oriente Médio. Preocupações sobre os direitos humanos estão no centro do conflito na Nigéria, onde o grupo militante islâmico Boko Haram ataca civis e as forças de segurança da Nigéria. O grupo armado tornou-se conhecido pela sua crueldade ao instalar bombas em mercados, mesquitas e escolas, matando milhares de civis. No ano passado, o Boko Haram raptou centenas de estudantes e mulheres jovens na região nordeste do país. Algumas foram forçadas a se casar com militantes e estavam sujeitas à violência sexual. Um sequestro coletivo ocorrido em abril provocou uma campanha de mídia social no mundo todo, a “#BringBackOurGirls” (“Traga Nossas Meninas de Volta”), mas essas vítimas e muitas outras permanecem em cativeiro.

Rica em petróleo, a Nigéria deveria ter sido capaz de escalar um exército profissional que respeite os direitos e que consiga proteger os nigerianos deste grupo abusivo. No entanto, as autoridades do país deixaram suas forças armadas mal equipadas e sem motivação para defender contra os ataques do Boko Haram.

Nos momentos em que o exército decidiu agir, o fez frequentemente de maneira abusiva, prendendo centenas de homens e jovens suspeitos de apoiar o Boko Haram, mantendo-os presos em condições desumanas e agredindo-os fisicamente,ou até os matando. Muitos outros membros da comunidade foram vítimas de desaparecimento forçado, supostamente pelas próprias forças de segurança. Em março, quando suspeitos de pertencer ao Boko Haram fugiram do quartel de Giwa, um centro de detenção conhecido por seus abusos, as forças de segurança da Nigéria supostamente recapturaram e sumariamente executaram centenas deles. 

A persistente falta de responsabilização por essas atrocidades tem dificultado a assistência na área de segurança por parte dos aliados da Nigéria, já que temem  tornarem-se cúmplices dos abusos. O fracasso das autoridades nigerianas em conter as forças de segurança também alienou as comunidades locais, que de outro modo poderiam ter voluntariamente fornecidoinformações de inteligência às autoridades. Para conquistar os “corações e mentes” da população civil, o governo precisará investigar de forma transparente os supostos abusos do exército e punir os infratores. 

A Abusiva Resposta do Quênia ao Al-Shabaab

Como acontece com a Nigéria, o Quênia vem observando um grande aumento de ataques extremistas contra civis, alimentados, pelo menos em parte, por uma resposta abusiva da força de segurança. O grupo somaliano radical islâmico Al-Shabaab realizou seus ataques de maior notoriedade em um shopping de Nairóbi, em Mpeketoni e vilarejos próximos ao longo da costa do Quênia e na cidade de Mandera, no extremo nordeste.

A resposta do Quênia tem sido repleta de abusos. Em vez de criar confiança pública na capacidade das forças de segurança de combater esses ataques, as operações das forças de segurança têm gerado desconfiança e indignação da opinião pública. Em abril, após uma onda de bombardeios e ataques de granada em Nairóbi, a polícia e as forças armadas realizaram a Operação Usalama Watch no bairro Eastleigh da cidade – uma campanha de larga escala que implicou em violações dos direitos de refugiados e requerentes de asilo registrados, imigrantes somalianos ilegais e outros estrangeiros, assim como quenianos de origem somaliana. Assim como em operações semelhantes anteriores, a polícia queniana arbitrariamente prendeu vários milhares de pessoas e empregou força excessiva, invadindo casas, extorquindo moradores e cometendo abusos físicos contra somalianos étnicos.

Enquanto isso, evidências demonstravam que as unidades quenianas de combate ao terrorismo foram responsáveis pelo desaparecimento forçado e execuções extrajudiciais de suspeitos de terrorismo ao invés de apresentá-los a um tribunal.  Em vez de responder ao clamor público, o governo tentou silenciar o mensageiro, atribuindo ainda mais poderes às forças de segurança e fortalecendo os controles legislativos sobre a mídia, sociedade civil e outras fontes de crítica independentes. Países aliados, particularmente os EUA e o Reino Unido, que fornecem um apoio significativo contra o terrorismo aos serviços de segurança do Quênia, têm demorado a responder ao crescente conjunto de provas deste comportamento abusivo.

A Crise na Ucrânia e na Rússia

A ocupação pela Rússia da região ucraniana da Crimeia e seu apoio militar aos rebeldes no leste da Ucrânia têm representado grandes desafios para os governos ocidentais do ponto de vista polític e de segurança. O cerne da controvérsia envolve questões de soberania, sobre as quais a Human Rights Watch não toma qualquer posicionamento. No entanto, a relativamente acanhada reação ocidental à intensificação das violações dos direitos humanos que vêm eclodindo na Rússia durante os dois anos anteriores pode muito bem ter agravado a crise ucraniana. 

Os governos ocidentais impuseram intensa pressão política sobre a Rússia, incluindo sanções específicas, a fim de incentivá-la a retirar-se da Crimeia e parar de fornecer apoio aos rebeldes. No entanto, de modo geral, esses governos subestimaram o crescente autoritarismo na Rússia desde a volta de Putin ao Kremlin, ou tiveram dificuldades de reagir a ele. 

Temendo uma possível “revolução colorida”, em 2012, o Kremlin deu início ao que se tornou a mais intensa repressão à dissidência desde a era soviética. Tendo como alvo grupos de direitos humanos, dissidentes, jornalistas independentes, manifestantes pacíficos e críticos que utilizam a Internet como forma de expressão, o governo russo reduziu de forma radical a possibilidade de que opiniões contrárias atingissem um grande número de pessoas. O resultado foi um sistema de informação fechado, que permitiu ao Kremlin reprimir maior parte da oposição contra suas ações na Ucrânia. A integridade dos direitos políticos na Rússia deveria ser uma parte central de todos os esforços para resolver o conflito ucraniano, mas não tem sido bem assim.

Da mesma forma, em meio ao que por vezes parecia ser uma nova Guerra Fria com a Rússia em relação à Ucrânia, o ocidente parece ter também recorrido à mentalidade retrógrada do “bem contra o mal”. Ansiosos por apresentar a Ucrânia como vítima inocente da agressão russa, o ocidente se negou a questionar aspectos preocupantes do comportamento ucraniano, como, por exemplo, o uso de “batalhões de voluntários” que, de forma recorrente, cometem abusos contra detentos ou usam, indiscriminadamente, armas em áreas povoadas. Enquanto isso, as próprias forças pró-Rússia no leste ucraniano abusaram gravemente dos detentos e puseram em perigo as vidas da população civil com o lançamento de foguetes nas proximidades.  A relutância do ocidente em lidar com os abusos ucranianos tornou politizado o que deveria ser um apelo para ambos os lados, baseado em princípios de respeito ao direito humanitário internacional –que, se bem-sucedido, “acalmaria os nervos” e aumentaria a possibilidade de uma solução política mais ampla. 

Repressão Chinesa aos Uigures em Xinjiang 

A tática do governo chinês em relação a Xinjiang – província ao noroeste do país que é o lar da minoria muçulmana uigur – é responder às reivindicações sobre as violações dos direitos humanos com mais restrições e violações. O governo de Pequim afirma que a repressão é necessária para combater o separatismo e o terrorismo, mas sua tática é impor algumas das políticas mais draconianas e discriminatórias contra os uigures, incluindo proibições de usar barbas e véus, restrições sobre a prática de jejuns e discriminação ostensiva com relação à educação religiosa. 

Os crescentes ataques fatais contra civis e as forças de segurança em Xinjiang são uma grande preocupação para o governo. No entanto, a avidez com que o governo atribui a violência aos “terroristas uigures” – ao mesmo tempo que raramente encontra provas e rotineiramente nega aos suspeitos o direito a um julgamento justo – cria um círculo vicioso em que os já reprimidos uigures sentem-se sob constante ameaça do Estado. Com as poucas informações disponibilizadas publicamente, é impossível avaliar com precisão se os presos, que muitas vezes são condenados à morte, são responsáveis pela violência ou se as severas medidas do governo para o combate ao terrorismo estão sendo aplicada contra as pessoas certas.

Como ilustrado pela extraordinariamente rigorosa decisão de prisão perpétua proferida em setembro ao economista uigur moderado Ilham Tohti, o Estado permanece relutante em fazer a distinção entre críticas pacíficas e manifestações de violência. A receita para o aumento da violência está montada: cruelmente processar a crítica pacífica, não permitindo sequer espaço para a liberdade religiosa ou cultural e expandindo uma estratégia econômica na qual os uigures não são capazes de concorrer igualmente com os migrantes chineses da etnia han.

A Abusiva Guerra contra as Drogas no México

No início de 2007, o governo do então presidente Felipe Calderón deu início a uma “guerra contra as drogas” no México, posicionando de forma massiva as forças de segurança no combate aos violentos cartéis de drogas do país. O resultado foi uma epidemia de execuções sumárias, desaparecimentos forçados e torturas pela polícia e forças armadas, propagando violência entre as organizações criminosas concorrentes e uma catástrofe na segurança pública, que custou a vida de mais de 90.000 mexicanos. Em seus dois anos no cargo, o atual presidente do México, Enrique Peña Nieto, moderou o discurso retórico da guerra contra as drogas, mas não fez intervenções significativas na redução da corrupção e impunidade, que possibilitam o surgimento dessas atrocidades.

Washington apoiou as políticas de “guerra contra as drogas” do México, prestando assistência às forças de segurança do país, enquanto reiteradamente elogiava seus esforços no confronto com os cartéis. O que o Congresso norte-americano não fez foi manifestar-se contra os terríveis abusos que essas forças cometem ou impor as condicionalidades relacionadas aos direitos humanos estabelecidas em uma parte da assistência fornecida às forças. Ao invés de chamar a atenção de  um importante aliado e arriscar a cooperação bilateral na luta contra os narcóticos e outras prioridades de sua política, a administração Obama preferiu permanecer em silêncio, facilitando os esforços do governo mexicano de minimizar seus graves problemas de direitos humanos.

Alguns estados norte-americanos foram mais bem-sucedidos por meio da legalização da maconha, abalando o mercado ilegal desta droga. A administração Obama tem tolerado estas iniciativas, mas não tem oferecido muito apoio a elas. Pois deveria. Isso não é apenas a coisa certa a se fazer do ponto de vista do direito à privacidade, mas também um passo importante para o enfraquecimento dos lucros com os quais prosperam os traficantes de drogas.

Estados Unidos: Tortura da CIA, com Impunidade

O ano chegou ao fim com a publicação de uma sinopse editada pelo Comitê de Inteligência do Senado norte-americano do seu relatório a respeito do uso de tortura pela Agência Central de Inteligência (CIA) contra suspeitos de terrorismo durante a administração do ex-presidente George W. Bush.

O presidente Obama pronunciou-se de forma contundente contra a tortura durante seu mandato, usando seu segundo dia no cargo para banir as “técnicas avançadas de interrogatório” da administração Bush – um eufemismo para tortura – e fechar os centros de detenção secretos da CIA onde grande parte da tortura era perpetrada. No entanto, Obama se recusoude forma contundente a promover investigações em relação à tortura praticada pela CIA durante a administração Bush, que dirá a promoverações penais, apesar de ser uma ação obrigatória nos termos da Convenção contra a Tortura, ratificada pelos EUA em 1994. 

Existem vários possíveis motivos para a recusa de Obama em permitir ações penais. Ele pode ter temido que seria politicamente divisionista tomar a postura contrária, prejudicando o apoio de sua pauta legislativa pelos partidários de Bush no Congresso norte-americano, ainda que tenha havido muito pouca cooperação nesse sentido. Ele pode ter  acreditado ser injusto promover ações penais depois que o Gabinete de Assessoria Jurídica do Departamento de Justiça constatou a legitimidade das “técnicas avançadas de interrogatório”, mesmo que o relatório do Senado tenha mostraque a CIA estava ciente de que essas técnicas levavam a torturas tendo buscado, dessa forma, apoio político para justificar o injustificável. Ele pode ter acreditado que a grave ameaça à segurança enfrentada após os atentados de 11 de setembro de 2001 justificou recorrer a formas extremas de interrogatório, mesmo que o relatório do Senado tenha mostrado que elas produziram pouca ou nenhuma inteligência acionável, ao mesmo tempo que prejudicaram o posicionamento internacional norte-americano e impediriam os esforços da luta contra o terrorismo.

Em outras palavras, a recusa de Obama em permitir a responsabilização criminal dos autores das torturas significa que a proibição penal básica contra torturas permanece uma lei nãosem efeito nos Estados Unidos. Isso possibilita que futuros presidentes dos Estados Unidos, que inevitavelmente enfrentarão graves ameaças, lidem com a questão da tortura como uma opção política. Também enfraquece bastante a capacidade do governo norte-americano de pressionar outros países a processarem seus próprios torturadores, enfraquecendo uma importante voz para os direitos humanos em um momento em que o apoio baseado em princípios é uma necessidade urgente.

As revelações apresentadas no relatório do Senado também exigem uma ação na Europa, particularmente nos países onde os centros de detenção da CIA estavam localizados ou que foram cúmplices de rendições e consequentes  torturas. Até o momento, a Itália é o único país europeu que processou pessoas pelo envolvimento nos abusos da CIA. A Polônia finalmente admitiu ter um centro de detenção de suspeitos da lista negra, mas as investigações criminais foram suspensas. A Romênia e a Lituânia negam terem participado.

As investigações penais estão em andamento no Reino Unido, mas o governo britânico não cumpriu sua promessa de fazer um inquérito judicial verdadeiramente independente sobre o envolvimento do país nas rendições e torturas. É fundamental uma exposição e conhecimento significativos sobre o papel da Europa nestes abusos, a fim de seja possível promover a responsabilização dos envolvidos e evitar outros casos de abusos no futuro.

Conclusão: O Papel Central dos Direitos Humanos

Em todos os casos que abordamos, é inevitável que políticos e legisladores possam citar aparentes boas razões para minimizar a importância dos direitos humanos. A proteção aos direitos humanos exige certas limitações que podem parecer adversas para aqueles que defendem a postura de “fazer o que for preciso”, que muitas vezes prevalece diante de graves ameaças à segurança dos países. Porém, o ano de 204 demonstrou  quão insensata essa maneira de pensar pode ser. Muitas vezes, as próprias violações dos direitos humanos detonaram essas ameaças à segurança e sua violação continuada frequentemente as agravaram. 

Os direitos humanos não são apenas restrições arbitrárias aos governos. Eles refletem valores fundamentais, amplamente compartilhados e profundamente arraigados, que impõem limites ao poder dos governos e medidas de proteção essenciais à autonomia e dignidade da pessoa humana. Trair esses valores raramente resulta em um final feliz. Lidar com as ameaças na  área da segurança exige a contenção de determinados indivíduos perigosos mas também  a reconstrução de uma estrutura moral que sustente a ordem social e política.

Os ganhos imediatos obtidos com a relativização desses valores e da sabedoria fundamental que eles refletem  dificilmente valem o preço que inevitavelmente deve ser pago alongo prazo. Ao invés de olharem para os direitos humanos como uma forma de restrição às suas possibilidades de ação, políticos e legisladores teriam mais sucesso se reconhecessem esses direitos como orientadores morais, bem como obrigações legais. Dessa forma, os resultados seriam provavelmente não apenas decisões certas, mas também as mais acertadas e eficientes a serem tomadas.

Kenneth Roth é diretor executivo da Human Rights Watch.